quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Histórias de Mukuru

8h da manhã e saímos da nossa casa em Madaraka em busca do matatu 33 para South B. Após alguns longos minutos esperando na rua até encontrarmos um matatu vazio (ou não), pagamos 30Ksh e partimos para South B ao som de música queniana no volume máximo. Chegando no ponto final, andamos por South B até chegarmos à entrada da favela de Mukuru, e pelo caminho passamos por muitas pessoas nas calçadas vendendo roupas, sapatos, frutas e tudo o que for possível.

Na entrada de Mukuru, como em toda outra favela por aqui, há muito comércio – desde lojas de ferramentas, salão de beleza, açougue, restaurantes e M-pesa (sistema de transferência de dinheiro por celular).  Andamos alguns metros, sempre acompanhadas por crianças gritando “mzungu, mzungu” (homem branco) e passamos pela casa do Mr Tomas, que nos cumprimenta com o seu “Hi babies, I love you, have a nice day!”, e de sua tia que tenta conversar com a gente em swahili – sem muito êxito.



Contornamos mais algumas esquinas, pulamos obstáculos de esgoto e lixo, passamos por escolas, casas e muitas crianças e enfim chegamos à Upendo. Ao abrirmos a porta somos recebidos com abraços, sorrisos e muitos gritando “titchááá” (teacher) querendo chamar nossa atenção.


"titchááá"
Depois das nossas atividades na escola, almoçamos num restaurante ali mesmo dentro da favela. Pagamos R$70ksh (menos de 1 dólar) por um almoço muito saboroso – pilau, chapati e feijão – em um restaurante super simples com a companhia de alguns ratinhos.

No final do dia passamos novamente pelo Mr Tomas, que ganha a vida vendendo samosas, mandazis e outras comidas típicas em frente à sua casa (de apenas 5m², sem banheiro nem cozinha) feita de madeira e barro. Todo dia quando chegamos em Mukuru ele nos cumprimenta com seu sorrisão, diz que nos ama e aparece com alguma novidade... 


Mr Tomas e nós em sua casa
Hoje ele resolveu nos mostrar vários jornais, que apresentavam reportagens sobre favelas, nos perguntar o que tínhamos aprendido nessa nossa experiência de 2 meses de trabalho dentro de Mukuru e aproveitou pra nos contar mais sobre o dia-a-dia dessa comunidade.

Ele nos contava que dentro da favela nada é desperdiçado, tudo é dinheiro. Até mesmo restos de ossos de animais são usados para fazer colares e outros tipos de arte... E aí eu me lembro das nossas casas onde desperdiçamos tantas coisas e nem nos damos conta.

Dentro de Mukuru, todos tem uma relação de cumplicidade, todos são amigos. Nada falta, tudo se divide. Se você tiver passando por um aperto, pode contar certamente com o seu vizinho... E aí eu me lembro que nem sei o nome dos meus vizinhos.

Na favela eles têm tudo: restaurantes, lojas, salão de beleza, açougue, posto de gasolina... você encontra tudo lá dentro. As pessoas são felizes pelo que elas têm, as crianças abrem um sorrisão só ao apertarem nossas mãos e os alunos da Upendo vão felizes para as aulas por gostarem tanto de aprender e saboreiam com muito prazer o mesmo almoço todos os dias (ugali e repolho refogado)...  E então eu me lembro de quando já tive vontade de faltar às aulas apenas por preguiça e das vezes que reclamei de comida.



  

Quantas vezes nos vemos insatisfeitos e reclamando das nossas vidas (com casa, carro, televisão, computador geladeira, escola, emprego, família e tudo do bom e do melhor) enquanto o Mr Tomas está com seu sorrisão do rosto, acordando às 3:30 da manhã para começar a preparar seu ganha pão ali mesmo, no meio das ruelas de Mukuru (cheias de lama e lixo), em frente à sua casa de 5m² – que é separada por uma parede de telha e madeira da casa do vizinho – ao som de músicas quenianas em mais um dia de sol, trabalho árduo e esperança em Mukuru.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Rwanda... tu n'oublie jamais

Duas amigas, duas mochilas, uma longa estrada e um destino: Ruanda.


Saindo de Nairobi, Quênia (com algumas horas de atraso, sempre de acordo com o kenyan time) pegamos o ônibus para Kigali, capital da Ruanda com parada em Uganda. Em meio às 24h de viagem, com paradas nos piores banheiro imagináveis (um era apenas um cercado, sem banheiro queniano, sem vaso sanitário, nada, apenas a cerca e o chão), finalmente chegamos à Ruanda. 
Ao tentarmos passar pela fronteira entre Uganda e Ruanda... surpresa! Quase não nos deram o visto... porém, com nossa “Rafiki talk” conseguimos convencê-los e entramos em Ruanda.

Rafiki talk: Uma das coisas que aprimorei durante esses meses no Quênia foi o meu poder de persuasão, reclamação e conversa. Sempre que queremos convencer alguém ou queremos negociar por melhores preços, já começamos a conversa com o famoso “Rafiki” (amigo) e mandamos ver na lábia.

Ruanda foi colonizado pela Alemanha e em seguida pela Bélgica. Os belgas, em 1932 dividiram a população entre Hutus e Tutsis pelo número de vacas que cada um possuía (os Hutus possuíam mais de 10 vacas e os Tutsis, a minoria, menos de 10).  


A partir daí começou a rivalidade entre as duas tribos (que antes da divisão feita pelos belgas conviviam normalmente, afinal, não havia sequer diferença entre eles) que levou a grandes genocídios durante anos. Em 1994, ocorreu o último e maior genocídio no país, que culminou na morte de 1 milhão de pessoas em menos de 100 dias.


Uma intensa campanha persuadia a população à enxergar todos como seus potenciais inimigos (inclusive familiares e amigos que fossem da outra tribo) e assim o ódio se espalhou entre praticamente todos os que habitavam esse país.


Durante o episódio, as ruas foram tomadas por corpos brutalmente massacrados. Todos da minoria Tutsi deveriam ser exterminados e ninguém seria poupado – muito menos as crianças.  2/3 da população foram dizimadas e milhares de Ruandeses se refugiaram em países vizinhos.

Se você me conhecesse e realmente
conhecesse você mesmo,
você nao teria me matado.
Quando eles disseram "nunca mais"após
o Holocausto, isso seria apenas para algumas
pessoas e não para outros?

Ao final do genocídio, famílias foram destruídas, milhares de crianças ficaram órfãs e mulheres – após os assédios sofridos – agora eram portadoras de HIV.
10 anos após o episódio, Kofi Annan (ex-secretário geral da ONU) disse que poderia e deveria ter feito muito mais para tentar impedir o massacre e, ainda, que a comunidade internacional é culpada pela omissão frente ao genocídio de Ruanda.

Eu e a Laura pudemos conhecer essa história de perto e ver os vestígios desse momento histórico no Memorial do Genocídio em Kigali. Um misto de sentimentos nos invade ao tentarmos compreender o que realmente aconteceu e ver em nossa frente os restos de corpos e armamentos usados durante o genocídio.


O que mais impressiona é pensar que durante anos milhares de pessoas foram mortas das maneiras mais cruéis possíveis por causa da “divisão” imposta por colonizadores sem razão alguma. Mais impressionante ainda é, após menos de 20 anos, encontrar uma Ruanda completamente civilizada, desenvolvida e organizada, sendo referência para outros países do Leste da África... 
São marcas de um passado que constroem um futuro.

Kigali - Ruanda

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sabores do Quênia

“Mother is in the kitchen, cooking chapatti, I like chapatti, nham nham nham”

Essa foi a primeira música que ouvimos em uma escola na favela de Mathare e que desde então não saiu mais de nossas cabeças. Chapatti, feito de farinha refinada ou integral, água, sal e óleo (lembra um pão sírio mais fino) é uma das comidas mais famosas aqui do Quênia, e é servido no café da manhã, almoço e jantar.

Crianças na escola em Mathare comendo chapatti

Além do chapatti, é muito comum mandazi (lembra um bolinho de chuva) ou panquecas no café da manhã, e claro, tudo frito com muita gordura. Aqui eles usam muito aqueles baldes de gordura vegetal (total trans).

Mandazi

Uma das coisas que mais gostei foi a “samosa”, lembra um pouco a esfiha árabe, mas com a massa muito mais fina e frita. Os recheios variam de legumes à carne e às vezes muito apimentada.

Samosa de legumes


No almoço é hora de Ugali (uma massa feita de farinha milho) que se come junto com legumes e carne, tudo com a mão mesmo. O Ugali por si só não tem gosto de nada, mas com o molho e os acompanhamentos fica muito gostoso.

Ugali, sukuma e frango


É comum também o coconut rice (arroz com coco, delicioso), feijão, pilau (praticamente um risoto de carne), mukimo (batata cozida amassada com feijão), sukuma (lembra a nossa couve-mineira refogada), repolho refogado e green grams – meu favorito!!

Mukimo

Arroz, chapatti, legumes e repolho refogado

Coconut rice e green grams

O país é muito famoso pelo café e chai (chá com leite), o que faz com que esses sejam apreciados em todas as refeições.

Chai e chapatti
                                             
Como em toda grande cidade, em Nairobi há uma invasão dos fast foods, mas surpreendentemente não há Mc Donald’s – só umas imitações fajutas – e, é claro, muitas pizzarias e “takeaway” de fish and chips e chicken and chips, devido à colonização britânica.

O Quênia possui 42 tribos em todo o país, e cada uma possui suas particularidades, inclusive em relação à alimentação. Algumas têm preferência por peixe, frango ou carne – como os Masai, que comem exclusivamente tudo que vem da vaca (carne, sangue e leite).

                                          

Durante os dias da semana que trabalhamos na escola, almoçamos dentro da favela mesmo, onde é possível encontrar pequenos restaurantes que servem todos esses pratos típicos por cerca de 70 shillings (menos de 1 dólar).
Ao longo do caminho até a escola, dentro da favela de Mukuru, passamos por várias barraquinhas vendendo frutas (1 banana pequena é 5 shillings), fritando mandazis e samosas, preparando peixe na brasa, e claro, por vários açougues – sem refrigeração alguma e com muitas moscas (já dizia minha avó: “o que não mata cria anticorpos”, e nesse momento devo estar cheia deles)!




Quando perguntei pras crianças da escola o que elas mais gostavam de comer, todos falaram de chapatti, sucuma (couve), espinafre, green grams, repolho e frutas... Coisa linda ver crianças gostando de comer vegetais, frutas e tantas outras coisas características da cultura alimentar de seu país. Lá pelas 10 da manhã, horário do recreio em algumas escolas, é possível ver muitas crianças andando pelos labirintos de Mukuru, repletos de lixo e esgoto à ceu aberto, comprando frutas para o lanche.




Andar por Mukuru nos traz um misto indescritível de sentimentos... felicidade ao ver as crianças gritando “muzungu” e correndo atrás de nós, tristeza e choque ao ver essas mesmas crianças brincando no chão ao lado do esgoto e rodeadas de lixo e fumaça, e esperança à cada vez que saímos de lá com o corpo cansado mas com a certeza de que foi mais um dia de trabalho e aprendizado.



domingo, 15 de janeiro de 2012

Safari e tribo Masai

Após uma longa semana de trabalho intenso na Upendo Rescue Centre, resolvemos aproveitar o final de semana para fazer um Safari em Amboseli, quase na fronteira com a Tanzânia, de frente para o Kilimanjaro (o 2° maior monte do mundo).
Amboseli é um parque nacional E-N-O-R-M-E e pudemos ver vários animais muito perto de nós, foi incrível:







no flagra








Antes de voltarmos pra casa fomos conhecer uma tribo Masai. Os masai fazem parte das 42 tribos do Quênia e são uma das tribos africanas mais conhecidas internacionalmente, principalmente por possuirem tradições peculiares que são cultivadas até hoje.



Os masai são nômades, vestem roupas de cor vermelha e azul e usam muitos colares, pulseiras e brincos feitos de miçanga colorida. É muito comum encontrar masais vendendo suas artes – que hoje são também sua importante fonte de renda –, o que faz com que tenhamos que barganhar bastante... E nessas horas, saber algumas palavras em swahili, é essencial.
Rafiki (amigo), mimi si muzungu (eu não sou muzungu – homem branco), mimi si na pesa (eu não tenho dinheiro)

A alimentação dos masai é baseada em carne e sangue de boi, bode e leite (dá-lhe proteína e nada de fonte de fibras, como vegetais e frutas). A quantidade de vacas que a tribo masai possui é o que determina sua classe social. Eles cozinham no chão e fazem o fogo com pedaços de madeira e palha.




Por serem nômades e morarem em locais bem isolados e distantes de hospitais, eles fazem seus próprios remédios: pra dor de cabeça, dor nas costas e joelhos (já que dão muitos pulos como forma de competição nas suas cerimônias), e um especialmente pra dar conta das 10 mulheres durante a mesma noite.

Os remédios





Os masai são poligâmicos e quando se casam devem dar 10 vacas para a família da mulher (ou seja, quanto mais vacas, mais mulheres terá). Os homens devem se casar aos 25 e as mulheres em torno dos 18 anos. Ainda hoje elas passam pela ablação (circuncisão feminina).
Quando completam 5 anos eles queimam o rosto com a forma de um círculo nas bochechas para se diferenciaram dos masai da Tanzânia (que fazem 3 linhas). Eles também furam e alargam a orelha e extraem o dente de baixo.




As casas, construídas apenas pelas mulheres, são feitas de esterco de vaca e cinzas, são bem pequenas e escuras – obviamente não existe energia elétrica – e as camas são de couro de vaca (mais duras que não sei o que).



Os masai mais velhos não falam inglês e a maioria não frequentou escolas, porém a tribo que visitamos (com 110 masai)  já possui uma escola com um professor, onde as crianças aprendem inglês e se preparam para quando forem mais velhas irem à escola, que fica a mais de 10km de lá.



Como nômades, quando a região em que vivem fica muito seca à ponto de não ter mais alimento para as vacas, eles se mudam para outro local.

Todos nos trataram muito bem, mostraram suas casas, explicaram as tradições e nos receberam com suas músicas e os famosos pulos. Com certeza foi uma das melhores experiências que tive até hoje!




Quem quiser saber mais sobre a cultura masai, pode assistir o filme “A masai branca” que conta a história de uma mulher que se casa com um masai e passa a viver em sua tribo e de acordo com suas tradições.